quarta-feira, 8 de abril de 2015

sexta-feira, 20 de março de 2015

Carta 077

Eu vou vagar para sempre, toda essa ilha, devagar.

Divagar.

Por quê, de alguma forma, o tempo e o espaço hoje e agora se contrapõem.

Eu caminho, e o tempo não.

Aqui, Evelyn, o tempo dilatou tanto que o sol sequer se move.

Se dilatou tanto que nada nunca morre.

E, ao mesmo tempo, o espaço cada vez mais se contrai.

E tudo aos poucos some. Aos poucos a própria existência se trai e se atrai.

Tudo se devora, tudo se desfaz.

Em si, se afoga.


Eternamente seu,

Leo

quinta-feira, 19 de março de 2015

Carta 076

Essa é minha sina.
Essa é minha penitência.

Eu vou vagar para sempre por todos os templos.
Eu vou atravessar para sempre todos os portos.
Eu vou peregrinar para sempre todas as baías,
Eu vou me perder para sempre em todas as enseadas.

Eu Sísifo.

Eu tentando achar você.
Eu tentando achar nós.
Eu tentando achar qualquer coisa aqui que me faça ter sentido.

Minha sina é sua ausência.
Minha penitência é te procurar - para te perder.
E te achar. E te perder.
E te reencontrar.
E não te ter.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Carta 075

Por muito tempo me peguei andando perdido por essa ilha, me perguntando como você poderia ter saído sem que eu notasse.

Ora, o quão tolo eu fui!

Tão imerso nessa dor que me afoga em mim mesmo, não fiz a pergunta que mais dói:

Como pôde você ter ido embora sem que eu percebesse?

E, para doer mais ainda:

Como pude eu demorar tanto a notar que você havia partido?

Como eu pude, Evelyn...?

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Carta 074

Eu me lembro que eu comecei ressignificando  o céu.

Primeiro, ressignifiquei as cores --
O azul do dia e o dourado do fim de tarde de seus olhos;
O negro profundo da noite, as noites com você;
O pálido d'alvorada, sua pele alva.

Depois eu ressignifiquei o que era sensorial --
O frio da noite era a sua ausência;
O calor da tarde era o calor do teu seio e do teu abraço;
O orvalho da manhã a promessa de você, de tudo que eu anseio.

Então eu ressignifiquei o espaço,
e o que passava no céu
era sempre um pedaço
do que passou entre você e eu.

Fui além e ressignifiquei a noite.
E a noite era não-você.
E era você ao amanhecer,
e desvocê quando o sol vinha a se desfalecer.

E o céu todo foi sendo você --
E o céu todo era enfim você,
mas não era; Era o que não era
e era o que era, e eu então já não sabia
se quando no céu eu te via,
eu realmente te via ou só te sentia.

E quando dei por mim,
em braile as estrelas te soletravam
e em sânscrito os cometas te escreviam
e em Morse de você, de lá me contavam.

Ressignifiquei até o reflexo do céu no mar,
E quando o sol desce até se afogar,
a falta de ar que o faz sufocar
é você, quando vai embora sem vacilar.

Eu ressignifiquei, e ressignificando
eu te descobri - ou me descobri.
Eu ressignifiquei, talvez, a própria ressignificação
e agora eu já nem sei
se no meio disso tudo
eu não ressignifiquei também o meu coração...

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Carta 073

No fim da cordilheira, eu vejo o Grande Templo no horizonte.
Negro, imóvel e perpétuo no horizonte.
Solitário e frio.
Vazio e sem vida.
Um grande bloco de magma negro dividindo o céu branco acima das cinzas abaixo.

Quem caminhar até o fim da cordilheira - quem tiver a energia (ou tamanha necessidade de fuga) para completar tal peregrinação - me encontrará ao final dela:
Borobudur - construído não com rochas vulcânicas, mas com tristeza.
Borobudur - erguido não com argamassa, mas com saudade.
Borobudur - firmado não sobre a montanha, mas sobre as lembranças.
Borobudur - o Templo Maior. Solitário e frio. Vazio e sem vida. Imóvel e perpétuo no horizonte.

Sempre seu,
Leo. 

ou apenas

Seu
Borobudur.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Carta 072

Evelyn,

Toda Caracórum é coberta, não de neve, mas de cinzas.
Daqui de cima vejo o cascalho negro desenhado entre as montanhas, a estrada cortando a cordilheira de ponta a ponta.
Atravesso esse Himalaia vestido de lembranças, um Everest enterrado em cartas chamuscadas.
Vi pagodes titânicos erguidos com a dor de lembranças - obeliscos de arrependimento cravados no coração da cordilheira.
Vi templos deixados para trás à mercê do tempo.
Por vim, me vi deixado para trás, à mercê do tempo.

Daqui, eu não consigo ouvir o Mar.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Carta 071

Caminho há dezessete semanas já, Evelyn, sobre o cinza que se estende até onde alcança a vista.
Aqui tudo é estático. Aqui, nada se move. Aqui nada é vivo, mesmo sem estar realmente morto.
O que eu pensava ser neve continua caindo preguiçosamente. Sem vento, o único som que corta o silêncio funéreo é o som dos meus pés afundando, passo a passo, no terreno instável.
Meus cabelos se tornaram cinza - não pela idade.
Minha pele está cinza. Sou um brâmane banhado em cinzas caminhando cego por lugar nenhum.
Sigo o sol poente no horizonte. Ele não é confiável aqui. Nenhum sol que brilhe à meia-luz perpetuamente é confiável. Eu caminho para o Oeste esperando encontrar a noite e as estrelas logo.

Olhando para cima, deixando as cinzas que caem devagar se acumularem ainda mais em minha barba, estendi o braço e tomei em minhas mãos um pedaço de papel chamuscado. O ar aqui queima.
Demorei alguns dias para entender que o que eu pensei ser neve não era neve.
Trazendo para perto de meus olhos, com certa dificuldade consegui ler as primeiras palavras do que estava escrito naquele papel: "Minha querida Evelyn..."

terça-feira, 22 de abril de 2014

Carta 070

Aqui as árvores não respiram.
Não há vida até onde alcança a vista.
O mar é sempre parado. Não há música na rebentação. Não há ondas ao amanhecer.
Meus primeiros passos foram incertos na areia branca-acinzentada. O sol brilha fraco entre as nuvens. O céu aqui é para sempre cinza, mas nunca chove.
Senti a neve caindo sobre meus cabelos ao entardecer, apesar de não estar demasiado frio para nevar.
O que é tudo isso?
Seria essa ilha um espelho daquela outra?
Seria essa a ilha que nós criamos, mas que só agora eu consigo enxergá-la?
Evelyn, foi você quem criou isso tudo...?

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Carta 069

Pelos sete mares, Evelyn...
Pelos sete céus...

...Acordei há pouco sentindo-me ainda zonzo, ainda desidratado, ainda moribundo.
Demorei alguns minutos para assimilar o que estava acontecendo: porque o mal-estar que eu sentia há dias parecia amenizar-se. Finalmente cheguei a algum lugar. Saltei do pequeno barco de um salto e, enfim, pisei em terra firme.
Receio, no entanto, estar mais perdido do que nunca. Não estou nos portos ao sul da ilha. Não estou no continente. Não estou próximo dos mercados da Indochina, nem nos portos de Lisboa. Demorei para me habituar a essa nova realidade. Aqui neva. Aqui não venta. Aqui, o tempo parece congelado...
Onde eu estou, me pergunto...?
Eu criei isso? Nós criamos isso? Seria essa a nossa ilha...?

- Leo

sábado, 29 de março de 2014

Carta 068

Deste lado não há fogo.
Deste lado me afogo.
Destilado me afogo(a).
Destilado me há fogo  -
                                      -   Desolado.

Há de me haver algo?
(Há de me haver fogo)
Há de me ver desolado?
Hades me ver desolado.
Hades me ver de seu lado.
De seu lado, não há de haver fogo.
De seu lado, me afogo.
Não há fuga do Hades.
Não há;  Fuga
              Hades     
              Fogo.
Não.
Há.
Fuga.
De você.
Do fogo.
Do Mar.
Fuga.
Não.
Há.